domingo, 19 de dezembro de 2010
Ponto de Interrogação - 4
Leia primeiro Ponto de Interrogação 1, 2 e 3 abaixo
Amigos, o que Deus queria com Jó afinal? Ele não era um homem justo, temente a Deus, que se desviava do mal? Não era uma referência? Não era um homem acima de qualquer suspeita? Era. Tudo isso e mais um pouco. Por isso mesmo, ele começou a se achar.
Havia coisas que todos sabiam sobre Jó. Havia outras que até o diabo sabia; outras que apenas sua família sabia; outras que até seus amigos sabiam; outras que só Jó sabia. Mas o que realmente estava no coração de Jó, só Deus sabia. E na sua imensa sabedoria, Deus usa todo aquela tragédia e sofrimento para revelar as profundezas do seu coração, purificá-las e fazer com que ele passasse a pensar como Deus e agir como Deus.
Depois dos sete dias de silêncio, encontramos as palavras “Disse Jó”. Mais do que ser o menor versículo da Bíblia em português, esta expressão é fundamental para compreendermos o que virá pela frente. Isso porque alguns argumentam que tudo o que Jó diz no seu livro é aprovado por Deus, uma vez que em 2:1 é dito que “em todas essas coisas, não pecou Jó com seus lábios”. Então, concluem eles, Jó só falou o que deveria ter falado. Só que antes deste pequeno versículo, o texto registra que “depois destas coisas”, isto é, os acontecimentos dos dois primeiros capítulos do livro, a história continua. O capítulo 3 abre-se como que num sinal luminoso de alerta. Vem a cena 2.
Ela se abre com um lamento e uma reclamação pesada. Jó afirma que era melhor ele não ter nascido. Ele amaldiçoa o dia do seu nascimento. E ao fazer isso, mais do que desabafar, ele comete um grande erro. Você pode levar em conta a situação, a dor, a doença, a febre, a fome. Mas ainda assim é um erro. Se é Deus quem determina o dia de cada um de nós nascer e morrer, quem conta os nossos dias, escreve-os no seu livro, desde que somos ainda apenas uma substância informe no ventre de nossa mãe, Jó está na verdade dizendo que Deus errou ao fazê-lo nascer.
Mas ele não pára aí. Em alguns momentos, durante os debates que se seguirão com seus amigos, ele deixa de responder a eles e dirige-se a Deus. Embora em momento algum Jó abre mão de Deus ou de sua fé nele, suas palavras revelam o que vai por dentro do seu coração. Veja alguns exemplos:
“Eu não sou culpado e Deus sabe disso (10:7). Embora eu seja íntegro, ele me terá por culpado (9:20). Ou seja, estou sendo condenado injustamente. Deus está errado no que pensa a meu respeito. Alguém precisa avisar o Todo-poderoso logo, porque ele se enganou”.
“Eu queria mesmo era processar Deus. Levá-lo a um tribunal e pedir vistas ao processo. Sabe qual seria o veredicto, se isso fosse possível? EU SERIA INOCENTADO” (13:3; 17-19; 23:1-7). Isso mesmo. Jó tem certeza de que ganharia a causa num tribunal em que ele fosse o acusador e Deus o réu.
“Deus quer acabar comigo e não há nada que eu possa fazer (10:7-10). Portanto, este é um relacionamento injusto. Eu estou em nítida desvantagem, porque sofro sem merecer nas mãos de um Deus que não tem rival. Tenho um monte de reclamações contra Deus, mas não tenho a quem reclamar”.
“Se existisse alguém para servir de árbitro entre nós dois, colocando sua mão sobre nós (e nesse ato deixando-nos, eu e o Todo-poderoso em pé de igualdade), a coisa seria bem diferente” (9:32-33). De novo: na cabeça de Jó, Deus estava errado e só um tribunal poderia consertar o erro.
“Veja o meu currículo (31:1-40): sou moralmente puro (v.1-4), honesto (v.5-8), fiel no meu casamento (v.9-12), um bom patrão (v.13-15), socialmente responsável (v.16-23), desprendido dos valores materiais (v.24-25), não sou idólatra (v.26-28), não tenho o que esconder (v.29-34). Será possível que isso não me faz merecer a recompensa de Deus?”
“Quem está rindo de mim hoje é gente que não serviria nem para ser colocado ao lado dos cães que guardavam as minhas ovelhas” (30:1). Este era o conceito de “ser humano” que o filantropo Jó tinha sobre seus empregados.
Antes de sair em sua defesa, lembre-se de algumas coisas. Em primeiro lugar, tenha por certo de que o sofrimento não criou um novo Jó. Apenas colocou para fora o que estava dentro dele. É o que acontece com aqueles chás de saquinho. Você coloca água quente no copo, de repente ela começa a tomar a cor liberada pelo chá. A água não criou nada. Ela foi somente um instrumento usado para liberar o que estava lá dentro. O sofrimento é a água quente no saquinho de chá do nosso amigo Jó e de todos nós.
Em segundo lugar, não fique decepcionado com Jó ao saber que ele pensava assim. Ele era apenas um homem expressando com sinceridade algumas coisas que antes estavam ocultas, possivelmente até dele mesmo. Quando tudo vai bem, conseguimos esconder-nos por trás das convenções sociais, religiosas e morais. Quando o caos se instala é que vamos saber do que realmente somos feitos. E muitas vezes nessas horas o resultado nos assusta.
Em terceiro lugar, não há incompatibilidade entre essas conclusões e o fato de Deus ter declarado que Jó era íntegro e temente a Deus e que se desviava do mal. Cornélio também o era, mas ainda estava perdido e sem uma experiência real com Deus até que Pedro prega para ele e o Espírito de Deus se revela completamente. O coração de Jó, apesar da externa religiosidade, continuava abrigando o orgulho, a justiça própria e a vaidade de tentar fazer alguma coisa para merecer o favor de Deus, comparando-se aos outros e desafiando o próprio Santo do universo.
Em quarto lugar, se você deixar em algum momento de olhar a vida dele por esta perspectiva, vai chegar erroneamente à conclusão de que Jó é um padrão inatingível. Ninguém jamais conseguirá ser como ele. Nada mais enganoso. Há muitas pessoas como Jó pisando a face da terra neste mesmo instante. Até melhores do que ele, quem sabe? Jó era apenas “um homem da terra de Uz”. Não era um super-homem. Era um homem.
Por tudo isso, Jó ainda está por conhecer a Deus de maneira mais profunda e experimental. Por enquanto, apesar do excelente desempenho, ele o conhece só de ouvir falar.
Marcos Senghi Soares
Publicado originalmente em 2006, na Colunet de www.irmaos.com
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicaremos mais comentários anônimos. Favor se identificar.