segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Ponto de Interrogação - 6



Leia primeiro os artigos Ponto de Interrogação 1 a 5 abaixo.

Amigos, todos temos nossos preferidos, nossos intocáveis, aqueles com quem ninguém pode mexer, estejam eles certos ou errados. Da mesma forma, temos também aqueles com quem somos implacáveis, a quem não damos sequer a chance de restauração quando erram. Fazemos isso com nossos contemporâneos e até mesmo com personagens da Bíblia. Elegemos os “queridinhos” do relato bíblico. É o caso de Davi, Samuel, Noé, José, Daniel e até Salomão. Desses, destacamos sempre as vitórias, as conquistas, a fama, a prosperidade e a fé. Então elegemos as “ovelhas-negras” da Escritura: Saul, Jacó, Sansão, o irmão mais velho do filho perdido. Para sermos honestos, nem estaremos totalmente certos em ver somente as virtudes do primeiro grupo – esquecendo-nos de suas falhas igualmente registradas para nosso ensino – como não estaremos corretos em olhar apenas os defeitos do segundo.

Digo isso porque Jó é um dos “intocáveis”. Já fui quase agredido uma vez por dizer o óbvio: Jó não era perfeito. O que temos visto até aqui nos permite concluir algumas coisas sobre Jó, as quais compartilho com os amigos (e inimigos também – eles gostam de me espiar por aqui).

Ele agia religiosamente. Crendo numa espécie de “teologia da prosperidade embrionária” - aquela que anda fazendo muito sucesso nos nossos dias, com o pessoal que faz sessão de descarrego na televisão, cujo slogan é “Pare de Sofrer” ou a “Graça” que não tem graça nenhuma. Basicamente, a idéia é que se você for fiel, andar direitinho, for um bom sujeito, Deus tem a obrigação de livrar você de todos os problemas e enroscos da vida. Essas coisas, dentro dessa teoria, só podem acontecer com quem não presta ou com quem não tem fé. Em outras palavras, o justo sempre vai ser abençoado e o perverso sempre castigado. Por crer nisso, Jó gerou expectativas erradas a respeito de Deus. Deus nunca disse que essas eram as regras do jogo. Isso porque nosso relacionamento com ele se baseia na Sua graça. Deus nos dá as bênçãos que quiser, independentemente dos nossos méritos. Ele nos dá somente o que for melhor para nós, para nosso crescimento e, em especial, para o Seu louvor e glória. Qualquer coisa menor do que isso é mera religião de interesses, nunca um relacionamento.

Ele tinha um conceito excessivamente alto a respeito de si mesmo. Quem chega ao ponto de achar que pode levar Deus a um tribunal com certeza de causa ganha, deve se achar. Esse era o maior problema de Jó. Tinha a firme convicção de que não precisava de nada. Infeliz do homem que acha que não precisa de Deus e que pode se virar sozinho. Vai lutar muito, mas não vai ganhar nada. O único jeito de vivermos na graça de Deus é quando reconhecemos que não somos nada, que não merecemos nada, que não conseguimos nada e que precisamos desesperadamente do recurso que Deus nos dá, por Sua graça: seu Filho Jesus Cristo e seu sacrifício por nós. Ninguém conseguirá chegar a Deus por seus merecimentos pessoais. Nosso currículo pode impressionar os outros, mas não mexe um milímetro o coração de Deus. Este só não despreza “um coração compungido e contrito” (Sl 51:17). O resto lhe dá náuseas.

Ele não conseguia encaixar seu caso em outra perspectiva. Sua revolta contra seus amigos não é tanto pela teologia deles, com a qual ele em parte concorda, mas é por não ver como a sua situação se encaixa nessa cosmovisão. Se ele é justo e íntegro, como pode estar sofrendo? Tem momentos na vida em que as circunstâncias nos levam a pensar em novas possibilidades. Normalmente são os momentos de crise, que nos tiram da nossa zona de conforto e nos forçam a olhar as coisas de outro jeito. Se a gente não conseguir fazer isso, corremos o risco de ficar a vida inteira amargurados, murmurando pelos cantos e reclamando da vida. Será mesmo que os céus e a terra conspiram contra a nossa felicidade? Ou será que existe uma resposta melhor do que essa, que não conseguimos descobrir porque estamos cegados por nosso orgulho, vaidade e teimosia?

Deus ainda estava trabalhando no seu caráter. Pense em uma pessoa que influenciou muito suas vidas. Um líder, pai, professor, discipulador, um grande amigo. Agora imagine que você fica sabendo que eles têm falhas tão gritantes que Deus precisa corrigir. Como reagimos diante disso? Em geral, fazemos uma dessas coisas, quando não as três juntas: apontamos o dedo acusador (“ele nunca poderia ter feito isso”); abandonamos o sujeito (“Ele que se vire sozinho; que me esqueça”); usamos o fato como desculpa (“Ah! Se nem ele consegue ser um cristão excelente, por que eu teria que me preocupar?”). Não nos esqueçamos, porém, que Deus está ainda trabalhando, mesmo nos melhores e mais fiéis de seus servos, como era o caso de Jó.
Mas quando Deus fala, Jó demonstra uma grande virtude: saber ouvir a voz de Deus. Isso faz muita diferença. Até que enfim ele põe a mão sobre a própria boca, coloca-se no seu devido lugar e faz declarações extremamente corajosas para quem era um líder, uma referência, um sacerdote da sua extinta família. Imagine como foi difícil para ele admitir diante de seus amigos de tanto tempo que o seu conhecimento prévio sobre Deus era absolutamente superficial. Que ele tinha cometido uma tremenda insensatez ao questionar os planos e intentos de Deus: “Bem sei que tudo podes e nenhum dos teus planos pode ser frustrado” (42:1). Mais impressionante ainda: “eu te conhecia só de ouvir falar, mas agora os meus olhos te vêem”.

Até aquele momento, Jó agia por instinto religioso. Ele sabia o que devia fazer e fazia. Sacrificava, falava de Deus para os filhos. Mas agora, depois de ter ouvido o que Deus tinha a dizer sobre Si mesmo (muito mais do que ter passado por tudo o que passou), ele passa a ter uma experiência com Deus. Algo que era só dele e de mais ninguém. Não importava mais o que seus amigos pensavam. Não interessava a opinião das pessoas. O que realmente importava era a sua relação pessoal com Deus. Ele, agora sim, era um novo Jó.

Note que ele não sabe ainda o que está por acontecer. Nenhuma luz lhe foi dada de que sua sorte seria restaurada, que ele viria a ter o dobro de tudo o que já tivera na vida, que teria a bênção de ser pai com a experiência e a “curtição” próprios da idade de ser avô. Ele continua assentado no lixão da cidade. As feridas ainda não secaram. Seus amigos ainda estão ali. Seus filhos não ressuscitaram. Dona Jó continua olhando para ele meio desconfiada. As pessoas ainda passam na rua olhando com desprezo para o ex-magnata.

Nada disso tem importância mais. Jó já foi abençoado. Ele conheceu a Deus. O Todo-poderoso não é mais para ele apenas um motivo para longos discursos e altercações. Deus agora é alguém a quem ele conhece por si mesmo.

E então, ao invés de fazer mais um longo arrazoado sobre sua integridade, filantropia, retidão e bondade, ele conclui humilde: “eu me abomino e me arrependo no pó e na cinza”. Para onde foi o Jó arrogante, do estilo comigo-ninguém-pode, que acha que Deus errou? Esse Jó acabou. Morreu. Diante da revelação e da experiência com um Deus verdadeiro e vivo, essa transformação se dá. Agora ele pode até interceder por seus amigos.

É por isso que eu digo: esta não é a história de Jó. É a história do Deus de Jó. É disso que se trata este livro. Um Deus extraordinário revelando-se a homens comuns. Um Deus que tem o maior prazer em se fazer conhecido. Um Deus que pode nos alcançar e transformar, seja qual for o drama que estivermos vivendo. No dia da perda, da dor, do sofrimento, da injustiça, do prejuízo, da tristeza, da dificuldade, no dia da angústia, enfim, precisamos lembrar que o Deus de Jó pode ser também o nosso Deus.

Essa é a hora de checarmos até que ponto falamos sobre Deus mais do que O conhecemos de fato. É hora de ouvir Sua voz, falando do Seu poder, da Sua capacidade extraordinária de fazer coisas inexplicáveis, que a gente nunca conseguiria repetir ou imitar. É hora de verificarmos se somos religiosos ou se temos uma relação de verdade com o Deus Criador e Sustentador do Universo.

Quando você conhece a Deus, as circunstâncias não importam. Se é sofrimento ou prosperidade, se tem muito ou se tem pouco. Não interessa se você conseguiu todas as respostas às suas inumeráveis perguntas. O ponto de interrogação, da dúvida e da perplexidade se transforma no ponto de exclamação, de assombro, da empolgação, da descoberta de um Deus maravilhoso.

Porque "bênção" mesmo é conhecer a Deus. E ponto final.

Marcos Senghi Soares
Publicado originalmente em 2006, na Colunet de www.irmaos.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Não publicaremos mais comentários anônimos. Favor se identificar.