sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Ponto de Interrogação - 2



Leia primeiro Ponto de Interrogação 1 abaixo

Amigos, vocês se lembram das fases de suas vidas em que tudo ia bem? Você passou no vestibular, se formou em pouco tempo, sem DP´s, conseguiu um belo emprego, as pessoas o respeitavam, carro novo na garagem, férias duas vezes por ano, ida ao supermercado sem listinha de economia, cartão de crédito liberado, amigos em casa para o churrasco e a pizza, promoção no emprego e, claro, aquela ida à igreja no final de semana, onde tudo funcionava perfeitamente, louvor bem afinado, boa (e curta) pregação sobre os problemas da vida, futebolzinho na TV à tarde, outro culto à noite.

Assim era Jó. Até melhor do que isso. O homem ficou tão rico, mas tão rico, que em todo o Oriente não havia ninguém mais rico e poderoso do que ele. Seus negócios no ramo de logística cresceram tanto, que ele se tornou o dono da maior frota de camelos do seu tempo. Então aumentou para uma frota de jumentos, depois partiu para a pecuária. Como o rei Midas, tudo o que ele punha a mão virava ouro. Criou uma família linda e alegre. Era um cidadão religioso, temente a Deus, como Cornélio seria milênios mais tarde. Ele oferecia holocaustos a Deus freqüentemente, tinha suas devoções, gozava de boa reputação. Seu caráter provado o elevou à condição de juiz na terra. As pessoas não tomavam nenhuma decisão na comunidade sem consultá-lo. Quando ele passava, as pessoas paravam de conversar e rir em sinal de respeito. Era uma referência. Aquele cidadão que toda turma de formandos quer como paraninfo. As entidades assistenciais o procuravam, porque sabiam que sempre sairiam polpudas somas quando se tratava de ajudar pessoas carentes e necessitadas. Ele se sentia na ante-sala do céu. Acima dele, só o Todo-poderoso.

Até que um dia... sempre chega “um dia”. Tudo corria como sempre. Jó lia os jornais da manhã, feliz por perceber que as ações de sua empresa não paravam de subir. O dólar podia subir ou baixar. Os embargos ao Irã não afetavam sua fortuna. Mas chegou uma notícia que não tinha sido publicada ainda: seus rebanhos de bovinos e eqüinos tinham sido saqueados por um bando de beduínos fora-da-lei; seus rebanhos de ovinos tinham sido consumidos por uma misteriosa e inexplicável chuva de fogo; os caldeus tinham atacado a frota de camelos e levado tudo embora. Os servos estavam mortos. Só tinham escapado três mensageiros para lhe trazer as devastadoras notícias que mudariam sua vida para sempre.

Jó fica sem fala. Todo o trabalho e esforço de uma vida inteira perdidos de uma hora para outra. Ele tinha ficado pobre, literalmente, do dia para a noite. Na verdade, do dia para o mesmo dia. E agora, Jó? Vamos ter que começar tudo de novo. Mas isso não era tudo. Antes que ele tivesse tempo de articular qualquer palavra, chega a pior de todas as notícias. Como aquele telefone que toca no meio da madrugada, quando os filhos estão na rua. Aquela batida na porta que ninguém espera ouvir. “Seus filhos e suas filhas estão mortos, Jó. Uma tempestade de vento derrubou a casa onde eles estavam, não sobrou ninguém”.
Inexplicavelmente, tirando uma força sabe-se lá de onde, Jó consegue finalmente levantar-se e fazer uma declaração que atravessaria os séculos e os problemas de milhões de pessoas ao longo da história da humanidade: “O Senhor o deu, o Senhor o tomou; bendito seja o nome do Senhor”.

Jó não sabe o que nós sabemos. Ele não tem o script do filme de sua vida. Nada lhe é dito sobre as conversas nas regiões celestiais, o desafio que Deus lança a Satanás a seu respeito e muito menos a autorização que este recebe para provar Jó. Tudo o que ele conhece é a dor da perda. Tudo o que ele enxerga é um cenário de devastação e miséria. Não sobrou nada.

Pelo menos é o que ele pensa. Em pouco tempo ele vai descobrir que ainda tinha sobrado muita coisa, coisa pela qual ele daria tudo para reaver, ainda que fosse o único e último pedido seu a ser atendido.

Como é que um homem neste estado não pode ter dúvidas? Como não ficar aturdido diante de tantas circunstâncias adversas? “Circunstâncias adversas” chega a ser um eufemismo para descrever o estado de Jó. O que pode acontecer de pior?

Mas esta é a vida debaixo do sol. Nada há tão ruim que não possa ser piorado. Depois da tempestade, às vezes vem a bonança.

Outras vezes vem a enchente.


Marcos Senghi Soares
Publicado originalmente em 2006, na Colunet de www.irmaos.com

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